domingo, 29 de novembro de 2009

Resenha Crítica de Teresinha de Oliveira Ledo Kersch, do Texto CAMELO de Silas Correa Leite



Resenha Crítica:
A Perspectiva de um Camelo ao Olhar para o Oriente

LEITE, Silas Corrêa. Camelo. In: O homem que virou cerveja.
São Paulo: Giz Editorial, 2009.

Silas Corrêa Leite é natural de Itararé, São Paulo, e já publicou textos críticos, sátiras, ensaios, crônicas, contos, poemas, entre outros escritos, em aproximadamente 500 sites brasileiros e estrangeiros. Escreveu O rinoceronte de Clarice, um livro interativo que foi objeto de diversos estudos acadêmicos, dentre eles uma tese de doutorado na Universidade Federal de Alagoas. São de sua autoria os livros Porta-Lapsos, de poemas; e Campo de trigo com corvos, de contos.
O texto Camelo foi publicado inicialmente no site do Jornal O Estado de São Paulo e posteriormente passou a integrar a coletânea de crônicas intitulada O homem que virou cerveja, publicada em São Paulo pela Giz Editorial, em 2009. O referido livro é resultado da premiação do autor em primeiro lugar no “Concurso Valdeck Almeida de Jesus”.
A crônica é narrada em primeira pessoa, no tempo presente, por um camelo, narrador-personagem do universo oriental que dialoga com um provável leitor ocidental, provocando-o para que este saia de sua passividade diante dos fatos que o cercam e assuma uma atitude mais crítica, sobretudo em relação à constante violência que assola o planeta e às recorrentes guerras no Oriente, muitas destas resultantes de ataques oriundos do Ocidente.
O texto surpreende desde o início, a começar por este narrador inusitado, que observa o que acontece ao seu redor e revolta-se contra as injustiças cometidas pelos seres humanos, dos quais se esperaria certa racionalidade. Entretanto, esta vem justamente do camelo, através da reflexão e análise da realidade e da manifestação de suas ideias. Já no primeiro parágrafo, o leitor é convidado a pensar sobre as vítimas inocentes das guerras, principalmente nas constantes lutas travadas no Oriente, muitas destas protagonizadas ou apoiadas por líderes políticos ocidentais:

Pois é, mano, você que é um baita animal racional, de capacete, carcova, gravata, dólmã-de-tala, elmo ou turbante, deve estar aí se assuntando com esse deserto de acontecências ao deus-dará, a bem dizer, entre atropelos de idas e vindas aceleradas, nuvens de areia, torres pegando fogo, crianças inocentes explodindo, mulheres grávidas vitimadas, prédios de instituições civis se desmontando [...]. (p. 39)

Este camelo-narrador conduz o leitor à visão dos horrores provocados pelas guerras, realizando sua travessia pelo espaço desértico e descrevendo o que observa. Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em seu Dicionário de símbolos (1996), o camelo, por ser uma montaria que auxilia na travessia do deserto, conduzindo o homem de um oásis a outro, possibilita o alcance do centro oculto, da Essência divina. Nessa perspectiva, o camelo-narrador cumpre sua função, pois desperta a sensibilidade dos leitores para situações vivenciadas por inúmeros seres humanos, devido à guerra, e mostra que, ao aceitarem passivamente tais circunstâncias, não deixam de compactuar com esta realidade. Ao despertar para o sofrimento alheio e se interessar por ele, de alguma forma o leitor aproxima-se da Essência divina.
Nesse sentido, há um convite realizado pelo narrador para o leitor, sobretudo o ocidental, a fim de que este saia de seu lugar confortável de observador e entre em contato com a alteridade, com o Outro, respeitando seus valores e crenças e não se colocando como alguém superior, detentor das verdades absolutas, atitude que muitas vezes justifica atos violentos, como as guerras. Considerando as contribuições teóricas de Lévi-Strauss acerca do etnocentrismo, em textos como Raça e História (1952), pode-se dizer que o camelo propõe que o leitor abandone uma visão etnocêntrica, que enxerga o outro a partir de seus próprios valores, e adote uma postura de respeito à diversidade.
As descrições realizadas pelo camelo contam com o auxílio de dois outros animais: a águia e o gafanhoto, que lhes relatam acontecimentos de lugares por onde ele não passa. Se recorrermos mais uma vez ao Dicionário de símbolos (1996), observaremos que a águia constitui o mensageiro da mais alta divindade, ao passo que o gafanhoto tem um simbolismo ligado a pragas e devastações. Esta dualidade também é uma característica do próprio camelo-narrador. Este, assim como o gafanhoto, tem os pés firmes num chão inóspito. Além disso, encontra-se diante de uma realidade que o entristece e revolta-o. No entanto, apesar de tudo, assim como a águia, consegue olhar para o alto e sonhar com “um mundo em que todos possam viver em paz”.
Entre suas reflexões, o camelo deseja avidamente ganhar voz através de um “ventríloquo”, “mágico ledor de lábios”, “bruxo sem véus” ou mesmo de um “anjo poeta”. Tal desejo se concretiza, pois o camelo torna-se o narrador de sua história na crônica escrita por Silas Corrêa Leite. O escritor é o “bruxo sem véus” e o “anjo poeta” que possibilita a escritura e a materialização do pensamento do camelo. Há uma fronteira tênue, em que se misturam o narrador ficcional camelo e o autor da crônica, também poeta, Silas Corrêa Leite. As vozes do cronista e do narrador misturam-se, realizando uma escritura bivocal, por vezes ácida, por vezes tomada por profundo lirismo.
No final do conto, há uma provocação ao leitor: “Fique aí, seu camelo engravatado”. Ao ser chamado de camelo e convidado a permanecer onde está, o leitor é convidado a pensar no quanto os seres humanos têm demonstrado menos racionalidade que os animais...
Percebe-se, dessa forma, que o cronista, a partir do relato do cotidiano de um camelo no deserto, capta a essência do sofrimento humano causado pela violência da guerra, de forma singular e instigante, de maneira a levar o leitor a uma reflexão mais profunda sobre esta problemática e assumir uma postura mais crítica e menos passiva diante dos fatos.

Teresinha de Oliveira Ledo Kersch
(Mestranda em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

H2OUTROS




H2OUTROS


A bomba que te espera
Não virá da estratosfera
Mas do lixo que produziste na primavera
Haverá na terra tanto aterro sanitário
Que até tu otário
Já era

A bomba que te virá
Do céu não irromperá
Mas do pão e mel que faltará
E a fome horrendo que será
A bomba atônita de tua era

Por fim e por fatal mágoa
A bomba da falta dágua
Onde um bilhão de humanagente é pouco
Dois bilhões de gados marcados entre porcos
E a bomba H 2 Outros

-0-

Letra

Silas Correa Leite

Poema da Série: H2OUTROS – Letras de Rock Poemas

E-mail:
poesilas@terra.com.br
www.portas-lapsos.zip.net

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

ENCONTRO DE POETAS EM SP, 21/11, Casa das Rosas, Presença do Poeta Silas Correa Leite





Convite - Encontro dos Poetas Del Mundo do Estaado de São Paulo
Gostaríamos de contar com você nesse evento! Apenas, solicitamos a confirmação da presença, por e-mail, para que possamos relacionar os presentes nas listas de convidados.
Quem já confirmou a presença, não é necessário reconfirmar. Abaixo do convite, segue a Programação. Desde já, agradeço, desejando um abençoado sábado! Carinhosamente, Beth *Elizabeth Misciasci
Programação para 21.11.2009
Encontro do Poetas Del Mundo do Estado de São Paulo
14:00h- Início
Credenciamento
14:30h-
- Cerimonial - Hiago Rodrigues Reis de Queiros, convoca para a Composição da mesa 1
14:40h-
Apresentação dos Hinos
-Execução do Hino Nacional Brasileiro
-Execução do Hino do Chile
-Execução do Hino dos Poetas Del Mundo
14:50h - Abertura
Hiago Rodrigues Reis de Queiros dará as Boas Vindas aos presentes
14:55h -
Elizabeth Misciasci - fala do Movimento Poetas Del Mundo na Cidade de São Paulo
15:00h -
Marisa Cajado, fala do Movimento Poetas Del Mundo no Estado de São Paulo.
15:05h -
Delasnieve Daspet - Embaixadora para o Brasil de Poetas Del Mundo
- Explanara sobre Movimento Poetas Del Mundo, no Brasil.
15:35h -
- Apresentação do Secretário Geral e Fundador do Movimento Poetas Del Mundo, Sr. Luis Arias Manso.
Pronunciamento do Secretário Geral e fundador do Movimento Poetas Del Mundo.
16:05h -
Segunda parte do evento com Show "lítero-cênico-musical"
- Apresentação daquela que é namorada do teatro, tem um caso com a poesia, vive do amor platônico pela música e "arrasta um bonde pela dança": - Karla Jacobina.
16:25h -
Apresentação da Embaixadora dos Poetas Del Mundo na França
- Palestra áudio-visual de Diva Pavesi - Tema: A França no Brasil
17:05h -
Monólogo Cômico
- Apresentação do renomado Dramaturgo Deomídio Macedo, considerado uma das grandes atrações na Fliporto 2008, interpretando o velhinho Baltazar - 90 anos.
17:20h -
Composição da Mesa 2 -Debates.
- Presenças - Paulo Ferraz, José Faria Nunes, Silas Correa Leite, Rosani Abou Adal, Rodrigo Capella, Ricardo Almeida, Miguel Rúbio (Miguelzinho da Vila), Valdeck de Jesus, Roberto Romanelli e Delasnieve Daspet.
Tópicos priorizados
-Postura atual do poeta na sociedade.
-Paradigmas da poesia contemporânea.
-Mercado Editorial para a Poesia.
18:20h -
Apresentação de Stella Vives de Porto Alegre, performista da poeta portuguesa Florbela Espanca.
18:30h -
Lançamento do livro da Poesistas
Lançamento do livro da Poesistas e descrição objetiva, com a apresentação de Hiago Rodrigues Reis de Queiros, também organizador e idealizador do evento.
19:05h -
Miguel Rúbio, declama.
Declamação do Poeta e compositor Miguel Rúbio (Miguelzinho da Vila)
19:10h -
Apresentação Musical.
-Apresentação Musical (som e teclado) da cantora, instrumentista e também poetisa Bia Barros.
19:30h -
Abertura do Sarau por Dora Dimolitsas com presenças ilustres de vários poetas..
20:00h-
Menção Honrosa e sorteio de livros dos Poetas Del Mundo e CDs aos convidados.
20:15h-
Encerramento com a distribuição dos certificados de presença aos participantes e confraternização, por Delasnieve Daspet.
20:55h-
(Agradecimento Poema - Por Delasnieve Daspet)
Elizabeth Misciasci - Jornalista, Humanista, Escritora, Pesquisadora. Presidente do Projeto zaP! *Embaixadora Universal da Paz no âmbito do Círculo Universal dos Embaixadores da Paz.

sábado, 14 de novembro de 2009

Pedro Maciel Fala a Língua dos Deuses, no Romance Assustador COMO DEIXEI DE SER DEUS





Pequena Resenha Critica

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Pedro Maciel Fala a Língua dos Deuses


Em “Como deixei de ser Deus”, Pedro Maciel conversa com Deus e o Diabo. O estupendo e assustador Romance “COMO DEIXEI DE SER DEUS”, Ed. Topbooks, 2009, é o top de linha no atual momento da efervescente literatura brasileira contemporânea. Humor, concisão perturbadora, erudição, alumbramento e ironia, assustadora sonoridade, ritmo e muita lucidez. Máximas, epigramas, aforismos, citações, fragmentos reflexivos contundentes. Muito mais do que isso. Há recursos brilhantes na intextualidade, além de alumbrados estados metafóricos. E muito mais do que isso. Começa a apresentação estética da obra com a capa de um vermelho-diabólico que parte da obra “Desvio Para o Vermelho”, de Cildo Meireles, um dos pioneiros da arte conceitual.

Elogiado entre outros por Moacyr Scliar, o maior proseador brasileiro categorizado por excelência nos últimos tempos, por Ivo Barroso, pelo emepebelizado filósofo multimídia Antonio Cícero, e ainda por Luis Fernando Veríssimo (o maior cronista da imprensa), Pedro Maciel se afirma e confirma em cada trabalho, e todo mundo que entende do riscado surpreendido assina embaixo de que ele é mesmo a mais fina flor da espécie literária contemporânea. Muitíssimo acima da média. Um achado.

Com um seu mundo letral ostentando em esplêndido e magistral imaginário, algo apocalíptico; Pedro Maciel produziu um excelente romance presente-(passado)-(o futuro está sempre em construção), um romance com ecos, estados oníricos, viajações e até certas derramas. Ficção-show.

O pesadelo de Deus. O homem? O espelho? Deus mora nos fragmentos atemporais? Deus, a consciência do homem... Pensamentos, sensibilidades, abstrações – o tripé em que fomenta (fermenta) a obra COMO EU DEIXEI DE SER DEUS. Em entremeios a tudo isso, encantamentos e textamentos. O tempo-rei costurando veios. “Deus, a alma dos brutos”. E os brutos que amamodeiam. Diálogos interligados, incendiando pequenos parágrafos epigramáticos entre reticências, citações e a pólvora do criar se vislumbrando. A arte-pura-provocação. A construção-desconstrução de uma babel íntima? O que foi é. O que será se cabe sendo. Deus não é fóssil. Não é fácil, portanto. O universo mágico da loucura que não é santa e nem se veste de ouro e prata, talvez vermelho-coisal, bezerros de ouro à parte...

O “Bildungsroman” (romance em formação) informa, transforma, reforma, disforma, forma, metamorfoseia. Essas e outras. Idéias? Propósitos? Como um concretismo em prosas. E toma Platão, Heráclito, Beckett, Da Vinci, Dostoiéski. E os livros sagrados, claro, que sem eles não haveria a proposital (?) provação, provocação, ação literária nesse caso de extremidades que se tocam, permeiam, tecem, vazam, desnorteiam.

A “desnarração” sem arames e presilhas como fim, fito e propósito. A voz do narrador (em negrito); a voz que clama no deserto (em itálico): delírios que nada passam a limpo, antes, com e fundem, feito delírios sarados do finito ser que cria o transcendentalizar-se. Será o impossível. Quando se brinca de Deus, com Deus, adeus sanidade. Sorte nossa. Será o impossível? Ah a notável caixa de pandora da literatura dando bons refluxos. Estamos no coração das luzes e não nos enxergamos em nós? A função da escrita enquanto arte é também retrazer o não identificável. Talento tem gerador próprio. É o caso de Pedro Maciel já elogiado por A Hora dos Náufragos (Bertrand Brasil, 2006). Ninguém fica lúcido de uma honra pra outra. A impertinência é que faz a hora, a criação.

Pedro Maciel é sim um puro “neoriobaldo” em contracorrente: “A gente vive pra desmistificar”. E administrar as contundências dos mitos também. Entre o sótão e o porão de si mesmo (tantos sis em si), Pedro Maciel maravilhosamente desestrutura o osso de ostra do romance formal. Um de-quê de Borges, de Garcia Marques, de Cortazar, de Kafka Lispectoriano... E ainda assim, o lugar de si tem cabimento.

O romance que se atirou frente a janelas de alma-mente-coração. A alma diversa. A vida (vida?) diversa. Um romance que diz versos. Janelas de fugas criacionais. Quase pequenas pinceladas multi-historiais. O não lugar, o são ser, os não personagens. Deus e o diabo na terra do nunca, na terra do Self. E escurez. Sozinhez. A originalidade da obra clássica de Pedro Maciel surpreende, assusta, intriga, corrói (des)valores, desmistifica, toca o indizível. Toca circuitos, escritas.

Vejam/leiam os “joios” preciosos:

“Ontem visitei a cidade em que nasci; ninguém me reconheceu(...)/deuses não têm Deus quando lembram do homem(...)/Se Deus existisse todo mundo ficaria sabendo(...)/Há cabeças que mesmo cortadas emitem pensamentos(...)/Pelo amor de Deus se vai ao inferno(...)/A linguagem sempre esconde o pensamento(...)/O homem pensa e Deus ri(...)/Quando nasci os deuses já estavam mortos(...)”


-0-

Silas Correa Leite, Santa Itararé das Letras, São Paulo
Teórico da Educação, Conselheiro em Direitos Humanos, Jornalista Comunitário, Poeta, Contista, Resenhista, Ensaista e Crítico. Autor de Porta-Lapsos, Poemas, e Campo de Trigo Contos (finalista do Prêmio Telecom, Portugal), a venda no site:
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Surpreendente Romance SOL NEGRO de Augusto Ferraz






Pequena Resenha Crítica (Primeiro Rascunho)


As Clarificações Literárias do Estupendo Livro SOL NEGRO de Augusto Ferraz



“A ausência de uma coisa não é somente isso,
não é apenas uma falta principal, é uma
subversão de todo o resto, um estado
novo impossível de prever no antigo”

(Marcel Proust)



O Livro SOL NEGRO, de Augusto Ferraz (Nossa Livraria Editora, 2008, Recife-PE), é um belíssimo e surpreendente entrecortado de interessantes intertextos (e paradoxal a partir do nome, inclusive), entre contos-poemas, contos-narrativas, contos-despojos, contos-arrebentações (e arrebatações?), contos reflexões (algo assustadores, quase todas), feito devaneios literários de alto estilo. Como classificar uma bela loucura criativa de tal obra-livro?

As narrações extremamente ousadas e criativas do autor de SOL NEGRO, é a primeira coisa que clama atenção, logo cativa, eleva, faz o leitor pensar com pose sobre o que lê (e se sentir privilegiado de estar lendo literatura de alto nível). A intensidade do que se lê na intertextualidade que não se nomina, mas evoca sentimentos, sensibilidades e embebeda. Prosa poética de grosso calibre, por assim dizer.

Há em todo o Sol Negro de Augusto Ferraz uma espécie de neoexpressionismo, tudo muito denso, as cantagonias, as cisternas íntimas muito bem revisitadas pelo autor. Há cantos, êxtases, epifanias, prosas aqui e ali apocalípticas, homens e bichos, sintonias e ceifas, searas e intimidades, sítios e situações. A morte, a vida, o caos, o urbano o periférico, o rural, o encantado. Tudo iluminado com muita maestria poética no narrar.

A enumeração sequencial dos textos (partículas) sem nome, datando cada texto-conto (?), aqui e ali um susto, ou um apaziguamento, ou um “salmar” de algum modo que seja, entre uma surpresa, um susto, um gosto de raiz, de terra ou de sangue, tal a qualidade de mão cheia. Já pensou? Tardes e manhãs. Iluminuras. Mendigos, mortos, chuvas, desnaturezas. Oceano, cemitério, borboleta. Vidas humanas viçadas. Augusto Ferraz clarifica a escurez da vida, dos seres, dos sobreviventes, dos miseráveis. Bestas, dragões, tudo indo de roldão na sua pena criativa em altos vôos.

“Abro os olhos no meio da noite e o olho do tempo fecha-se sobre mim. O caos é a brasa da fogueira que se apaga(...). Fecho os olhos no seio da tempestade e contemplo a noite que há em mim.”

Bravo! Lindeza. Ah as prazeiranças e contentezas do artista letral, como dão prosa poética com asas... O SOL NEGRO é uma espécie de salvação da lavoura literária nesses tempos realmente muito pouco criativos, entre modismos, panelas e núcleos de abandonos e desprezos entre os salvos do incêndio e os que se agrupam em sulistas nichos midiáticos pouco férteis.

In, A Necessidade da Arte, Ernest Fischer nos diz “O Homem sempre se verá como parte da uma realidade infinita que o circunda, e sempre se achará em luta contra ela(...). A magia da arte está nesse processo de criação, mostrando a realidade como possível de ser transformada, dominada, tornada brinquedo(...). A arte como um processo de identificação(...). Somos um pouco criadores de obras que estendem nossos horizontes e nos eleva acima da superfície a que estamos pregados(...)”.

Augusto Ferraz é exatamente isso. Em algarismo romanos os contos (que sejam) surgem clarificando idéias, momentos, situações, muito além de limites (porque ousa a imaginação e o conhecimento do oficio de escrever), recuperando quadros cênicos.

“A tua palavra faz os mortos vestirem a fantasia da vida (in, pg 36)/ Palavras luzem como um sonho pendurado na parede da noite (pg 64)/ O flagelo santificado no prazer da carne (pg 97)/ Ela não resiste e embala-me a insônia como que acendo as estrelas nos cantos escuros do sol (pg 129)/ Um anjinho de lama, descido do purgatório ficava lá dentro das tocas dos guaiamuns (pg 153)/ A arvore que és, nasceu no meu peito(pg 162)”.

Todas as escritas de Augusto Ferraz são lindas, porque bem criadas, sentidas, revivificadas na sua bagagem de vida, de leitura, de seu sentir com a imaginação, de seu pensar empa-lavrando. Quem sabe se, a terra não é apenas um mero aterro sanitário do cosmos, onde aqui podem estar depositados todos os vermes?

Sim, é preciso clarificar a vida bela e a vida suja, a beleza e a tristice, a dor e o amor, o humor e o ódio, as disparidades e as coincidências, os paradoxos e as matizes, o que há de poder ser aproveitável na arte, na prosa, prós e contras enfim. E isso está na ótica e na mão do artista escrevendo seu tempo, no amor e na dor. Nínives e Gomorras. Há tambem no entremeio das narrativas um de-quê meio bíblico. A sintonia divinal no conto/canto CV é linda:

“Essa noite, dormi como um anjo. Sonhei que te amava. No sonho, eu vivia. Na verdade a vida é um sonho, e se eu sonhava é porque te amava. Amar-te não é um sonho, é a realidade. Louco de amor, o amor em ti enlouquecia, enquanto eu sonhava, o anjo me dormia”

Ah as entranhas do homem (Nelly Novaes Coelho).

Lendo Augusto Ferraz de alguma maneira enloucresço. Também pudera, com essas contações mexendo com os “sagrados” laços dos entes, mitos, abóbodas, céus, mistérios, ramificações... terra chã...

Sim, mexer com tantas loucuras-contações ao mesmo tempo é um vespeiro. Augusto Ferraz abre as portas da mente, do céu, do Self. E destila as escritas. Na casa do pai há muitas erratas?

SOL NEGRO não perdoa nadas e ninguéns. E se deixa sangrar com tantas tintas.

Disse Kateb Yacine:

“É preciso que nosso sangue se inflame
E que nos incendiemos
Para que os espectadores se comovam
E o mundo abra enfim os olhos
Não sobre nossos desejos
Mas sobre as chagas dos sobreviventes”
....................................................................

“Um dos traços essenciais da literatura na sociedade dita pós-moderna, consiste na rarefação dos gêneros, na interpenetração dos modos, na mistura arbitrária de espécies e modelos literários, numa constante e ousada intertessitura das formas (...)” disse Hildeberto Barbosa Filho, no próprio Prefácio do Livro Sol Negro, “Raro Encontro da Poética com a Beleza”.

Augusto Ferraz na verdade introspectou um mundo louco, um mundo meio Dublin, vidas do norte, um mundo irado em suas evocações, mas um catado e entrecortado mundo literal mesmo todo seu. O homem é o destempero de Deus na “herrança” da criação? Ora, sob a ótica de Darwin, quem mandaria Deus pentear macacos?

Para um artista de peso, viver não é só abanar o rabo.

Há que se registrar as acontecências. Tudo pode ser ou não ser. Eis questão. Ler “SOL NEGRO” de Augusto Ferraz é fazer um mosaico que está na prestação de prós e contras. Escrever é colocar luz nas bocas dos mistérios desses brasis em recantos e rebentos de palhoças gerais...

Literalmente, sem tirar e nem pôr, Augusto Ferraz escreve loucuras santas pelas linhas das tortuosas vidas, arrebentando conceitos estruturais de narrativas padrões. Um Augusto Ferraz gauche?

Bingo. Ou, quero dizer, eureka.

Augusto Ferraz SOL NEGRO fez um puta livraço.

A vida está nua e crua, escancarada. E ainda assim poetizada no que há de mais belo e cheio de ternura e encanto.

Acerta em quase tudo, só fugindo das regras que nomeassem o próprio criar diferenciado. Afinal, nem toda escrita sem uniforme são oráculos.

-0-

Silas Correa Leite, Santa Itararé das Letras, São Paulo
Teórico da Educação, Conselheiro em Direitos Humanos, Jornalista Comunitário, Poeta, Contista, Resenhista, Ensaista e Crítico. Autor de Porta-Lapsos, Poemas, e Campo de Trigo Contos (finalista do Prêmio Telecom, Portugal), a venda no site:
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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Romance A Espera do Nunca Mais, de Nicodemos Sena

LITERATURA / Resenha crítica

A Espera do Nunca Mais, de Nicodemos Sena – exemplo de como a literatura de ficção pode reordenar e recriar a ‘realidade’


Por Rodrigo Felix da Cruz*


Publicado em 1999, quando seu autor, Nicodemos Sena, completara 40 anos de idade, A Espera do Nunca Mais é uma saga amazônica ocorrida entre os anos 50 e 70 do século XX, que retrata a luta do povo amazônico frente aos desafios político-econômicos. História de índios e caboclos que lutam contra a exploração humana e a destruição da floresta: a luta dos oprimidos contra os agentes do Capital.
Embora seja um livro de estréia, A Espera do Nunca Mais (Ed. Cejup, 876 pág.) trouxe para seu autor o imediato reconhecimento da crítica, a qual, nas páginas de grandes jornais do ‘eixo’ Rio/São Paulo, reconheceu-o como a grande revelação da ficção que se fez na Amazônia brasileira na virada do século. Em 2000, A Espera do Nunca Mais conquistou o prêmio Lima Barreto/Brasil 500 anos, concedido pela União Brasileira de Escritores.
Tal obra divide-se em três partes: antes, durante e depois da chegada do grande capital à Amazônia. As três partes do livro, por sua vez, são divididas em dois núcleos narrativos, o núcleo da selva e o núcleo citadino. Em ambos os núcleos, personagens que vivem o dilema entre sua identidade ou tradição e o fenômeno de despersonalização imposto pelas novas relações de produção da vida decorrentes da “modernização” capitalista.
Somente após uma leitura superficial alguém poderia classificar essa obra como um “romance regional” que retrata uma saga amazônica. Na verdade, uma leitura cuidadosa mostrará – para surpresa do leitor – que se trata de um romance de caráter universal, que possui, como todos os grandes romances, a missão de recriar o mundo por meio de um sistema de ideias, pensamentos e imagens que unificam num só corpo a variação do cosmos, e que não vive apenas de minúcias de pequenos nadas individuais ou coletivos, mas de uma visão integral e macroscópica da realidade.
A Espera do Nunca Mais cumpre, portanto, com maestria, esse papel ordenador e recriador da realidade. Sua universalidade reside, sobretudo, no drama dos personagens, oprimidos versus opressores, a luta pela sobrevivência e por uma vida melhor com liberdade de escolha. Vítimas e algozes buscam seus ideais, sua identidade, o que não ocorre somente na Amazônia, mas em todos os lugares, razão por que classificar tal obra como “regionalista” seria reduzir sua grandeza.
Sena evoca Émile Zola em Germinal mostrando a luta entre classes, na qual os desfavorecidos se revoltam e são neutralizados. Zola, antes de escrever sua obra, efetuou larga pesquisa chegando ao ponto de conviver com mineiros. Sena, por sua vez, foi criado no ambiente descrito em suas obras – a Amazônia brasileira, mais precisamente, as selvas do município de Santarém, no estado do Pará –, e, para escrever este grande livro, procedeu também a uma profunda pesquisa. Tal esforço para pesquisar o meio e a cultura não é desprezível, pois Thomaz Edison disse que “o gênio é 1% de inspiração e 99% de suor”. O labor de Sena não produziu um livro de conteúdo apenas exótico, como tantos que escolheram as selvas amazônicas como palco para seus personagens. Maduras análises sociais expõem as chagas de uma sociedade que se debate entre o arcaico e o moderno:

“– Sabe o que eu penso, Julião? Tanto os militares quanto essa molecada que ataca o governo são umas mulas. Se a ditadura caísse, o Brasil acordaria no dia seguinte comunista. Já pensaste o horror? No Comunismo não há liberdade, nem propriedade privada, nem família. Tudo lá pertence ao Estado. E sabe quem é dono do Estado? Os burocratas – respondeu Cândido Abrósio, professoral.
– Oras bolas! Se é como diz o deputado, já estamos no comunismo! – provocou Julião.
– Como assim, meu jovem?!
– Me mostre a liberdade, a propriedade privada e a família no Brasil! Há liberdade com ditadura? Há, sim, más só para poucos. Liberdade para explorar uma mão-de-obra semi-escrava. Há propriedade? Há, sim, o latifúndio, enquanto a maioria não tem onde cair morta. Há família, deputado, com desemprego e salário de fome?” (p. 507/508)

A Espera do Nunca Mais, além de possuir caráter universal, também possui caráter épico. Para perceber estes caracteres o leitor deve fazer uma leitura observando três fatores fundamentais: o uso do “eu” Bakhitiniano, a complexidade psicológica das personagens e o uso do recurso narrativo in media res.
A primeira característica marcante que Sena trabalha em A Espera do Nunca Mais é o “eu” Bakhitiniano incompleto, dividido e que está numa eterna busca de ‘completude inconclusa’, em busca de si mesmo. O próprio título do livro apresenta esse “eu” Bakhitiniano – A Espera do Nunca Mais.

“Bem que eu gostaria de ir contigo, mas se nunca mais voltares também não vou chorar. Sabe, a gente aqui nasce e cresce esperando alguma coisa que a gente nem sabe o que é. A gente espera, espera, espera, tanto espera que acaba morrendo sem saber que passou a vida esperando” (p. 807).

Todos os personagens principais trazem em seu íntimo essa inquietação e angústia existencial.

Silvestre Bagata: “A partir de certo dia, porém, Silvestre Bagata começou a demonstrar um envelhecimento precoce. Perdeu o interesse pelo trabalho e até por Veva, e deu para acocorar-se no porto, no mesmo lugar onde se acocorava o vô Pachico, olhando sempre pro rio, balbuciando sons sem sentido enquanto coçava o enorme culhão que jazia fora do calção encardido, como se acometido por um pileque eterno. Sabá, assim como o pai outrora dava ao vô cuias de tiborna, dava-lhe agora de vez em quando goles de cachaça. Pouco a pouco um palor funéreo cobriu o rosto do valetudinário, que perdera a virilidade e o vigor, corroído por um processo de completo emasculamento, no qual os momentos de delíquio já eram mais longos que os de lucidez. Antes de morrer e ser enterrado na curva do rio, Silvestre Bagata aguentou algum tempo nessa semicoma...” (p. 57)

Gedeão: “Embora triste, Gedeão não desesperava, pois a esperança é como o ar para esses caboclos esquecidos há séculos no grande vale e que se acostumaram a viver uma longa espera.” ( p. 261)

Essa inquietação existencial é característica do ser eterno e interexistencial. Como cantou Raul Seixas: “Eu prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. O ser humano não é apresentado como um ser uno, mas como um ser complexo que vive várias existências em busca de sua identidade. No início do romance é narrada a trajetória de Silvestre Bagata em várias existências até sua reencarnação como Gedeão. Esse ser traz consigo uma tendência depressiva suicida. Uma luta entre sua coragem e covardia.

“Cansado de investigar em vão a sua origem, Gedeão sentiu pela primeira vez aquele desejo de morrer tão típico dos Bagata.” (p. 180)

Em sintonia com a crença predominante entre os ‘povos da floresta’, Estefano Alves Barbosa, o vilão da obra, surge como a reencarnação do explorador português Bento Maciel Parente, que em 1639 comandou as chamadas Tropas de Resgates.

“... ele entregou ao facinoroso português Bento Maciel Parente, que comandava, em 1639, uma das piedosas ‘tropas de resgates’, que tinham como nobre objetivo libertar da escravidão e salvar da morte certa os infelizes índios aprisionados por outras tribos, subjugando-os porém a uma nova e mais atroz escravidão, pois, como diziam os senhores portugueses, ‘escravos por escravos, era preferível que o fossem dos cristãos’. Contudo, mal concluiu a vil transação, a Providência fulminou o tuxaua com a morte, na qual, readquirindo a plenitude do conhecimento, reconheceu o seu erro e aceitou o desafio de regressar a este mundo para submeter-se a novas provas, certo de que agora as venceria.” (p.58).

O caboclo Silvestre Bagata, já moribundo, como que num transe, olha para Estefano e lança o seguinte impropério, como se o conhecesse de longa data: “– Maciel, filho duma porca, assassino de índios, comedor de criança, eu sei quem tu és. Maciel, filho duma piranha, eu vou mas volto pra te f ...” (p.62)
Passemos à segunda característica marcante da obra, a construção das personagens. Analisando-as, observamos que o romance inova, pois estas são ao mesmo tempo planas (ou bidimensionais) e redondas (ou tridimensionais). As personagens planas geralmente são personagens caricatas, cujo nome representa suas características. Gedeão – aquele que luta pelo seu povo; Diana – a princesa, a bela; Silvestre – da selva; Julião – Julien Sorel de O Vermelho e Negro que vive entre a paixão e a ambição; Maria Clara – a típica burguesa, etc.
As personagens redondas têm profundidade psicológica, são dinâmicas, obedecem a impulsos interiores. Gedeão e Diana não são simples tapuios, têm sentimentos, nobreza e aspirações. Julião vive dividido entre o ideal socialista e a ambição na escalada social; este, como Julien Sorel de O Vermelho e Negro de Sthendal (que vivia dividido entre o amor de Madame de Rênal e Mathilde), vive dividido entre seu amor por Dora ou Maria Clara.

“Não fora pelo Partido que Julião decidira entrar no Exército, porque nenhuma entidade do mundo, nem mesmo o Partido, comandaria doravante seus passos. Não era mais uma peça que não encontra sentido fora da engrenagem. Fora manipulado por entes invisíveis, que ele próprio criara. Agora teria absoluto controle sobre seu destino. Chegara a retirar o pôster de Lênin da porta do guarda-roupa, pois não precisava de guias...” (p. 543)

“Quanto às mulheres, não fosse uma cabocla no Marajó e Maria Clara, Julião seria casto. Basta, porém, três meses de campus – convivendo com as garotas mais bonitas de Belém, filhas da aristocracia paraense – para adquirir consciência da atração que exerce sobre elas” (p. 595)

O vilão Estefano é também o típico conquistador, possui uma vida dupla, vivendo os costumes dos selvagens e mantendo uma família típica burguesa na cidade.

“... Mas como sou um homem bom, faço-te a seguinte proposta: se mandares a tua mulher dormir comigo amanhã à noite no barracão, perdôo todas as suas dívidas.” (p. 127).

“O comerciante Estefano nunca se conformara por não ter um filho varão, legítimo, para ajudá-lo nos negócios. Amava Dora – ao seu jeito, é verdade –, mas não era a mesma coisa. Ele precisava tanto de um filho homem! Mas, à falta deste, daria à filha tudo o que também daria ao filho que não veio, inclusive estudos. Por isso a moça teve de vir a contragosto para Belém, onde começou a estudar administração de empresas – mais uma imposição paterna” ( p.289)

Diana, por exemplo, que poderia ser uma simples cabocla, define seu entendimento sobre a interexistência do ser:

“– Ninguém morre, apenas desaparece, mas fica na lembrança da gente e nas coisas que a gente vê mas não sabe que é a pessoa que foi simbora; e quando essas coisas olham para a gente então a gente lembra da pessoa que se foi; a gente lembra e pensa que é só lembrança, mas não é não; a pessoa que foi simbora tá aí pertinho da gente e a gente não vê...” (p. 808)

Por fim, a terceira característica fundamental da obra: A forma de narrativa. Sena utiliza o in media res (latim para “no meio das coisas”) que é uma técnica literária onde a narrativa começa no meio da história, em vez de no início (ab ovo ou ab initio). Os personagens, cenários e conflitos são frequentemente introduzidos através de uma série de flashbacks ou através de personagens que discorrem entre si sobre eventos passados. Obras clássicas tais como a Eneida de Virgílio e a Ilíada de Homero começam no meio da história. Apesar da ordem dos acontecimentos não ser linear, a História não perde verossimilhança nem credibilidade, uma vez que em seu romance-epopéia Sena descreve com intenção de veracidade os acontecimentos históricos (a construção da barragem no rio Maró – a luta pela liberdade dos caboclos da região – a luta pela escalada social de Estefano e Julião). Com este processo, a ação torna-se mais dinâmica e mais atraente para o público e constitui a terceira característica fundamental da obra.
No capítulo 1 da primeira parte a narrativa começa com Gedeão durante o meio da saga:

“Era ainda muito cedo quando o grasnar desagradável das ciganas o acordou. Gedeão saltou da rede onde dormira e, às apalpadelas, tropeçando em alguns paneiros de farinha empilhados no piso de chão-batido da casa, procurou a tênue claridade que penetrava pela porta de palha.” (p. 19)

Em seguida, no capítulo 2, a narrativa faz um flashback voltando a Silvestre Bagata, vida anterior de Gedeão:

“Conta-se que Sebastião Bagata, o Sabá, era o mais velho dos cinco filhos do falecido Silvestre Bagata, cujo avô, ao que se sabe, foi o primeiro morador do rio Maró...” (p. 30)

Então a narrativa segue até chegar ao momento do 1º capítulo e, então, inicia-se a segunda parte do livro.
Na segunda parte do livro é narrada a trajetória do personagem Julião, do núcleo citadino. No primeiro capítulo da segunda parte Dora, filha de Estefano, conhece Julião, aquele que viria a ser seu esposo:

“– Não és o rapaz que conversou comigo no primeiro dia de aula, o filho do fazendeiro do Marajó?” (p.292)

No 11º capítulo da segunda parte – O Búfalo Rosilho – ocorre um novo flashback para o momento em que o jovem Julião chega a Belem para estudar ficando hospedado na casa do Sr. Alarico, um fazendeiro amigo de seu pai:

“E Julião foi logo cair na casa dos Alarico. Uma gente metida a besta, que morava num prédio modernoso, enfeitado com pastilhas coloridas, para distinguir-se dos velhos casarões empoeirados onde ainda se escondiam os netos decrépitos da aristocracia decadente dos tempos da borracha” (p. 363)

Então a narrativa segue seu curso, adentrando a terceira parte do livro e seguindo até o final da obra. O uso do recurso narrativo in media res aliado à complexidade das personagens e dramas típicos do povo amazônico constitui o caráter épico do romance-epopeia A Espera do Nunca Mais. A antiga epopeia girava em torno de um acontecimento amplo e invulgar no qual um povo via espelhado o melhor de seu caráter moral e material. Quem atuava eram homens de superior envergadura, protótipos da comunidade, heróis ou semideuses que cumpriam a vontade divina.
Em A Espera do Nunca Mais o homem comum perde a força heroica e ganha em autonomia afetiva. O Mito aparece e cede o seu lugar ao social. Tal romance épico surge como um tipo superior de romance que remete o leitor ao mito moderno. Canta-se ao leitor as lutas e feitos do povo amazônico diante do aparecimento do Capital com suas quase sempre maléficas consequências.
A Espera do Nunca Mais é uma verdadeira lusíada da Amazônia (ou melhor, amazoníada) com toda sua grandeza épica e romanesca, obra digna de ser lida, estudada e para figurar no cânone da literatura brasileira.

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*Rodrigo Felix da Cruz é bacharel em Letras e Licenciado em Letras Português-Francês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP-Universidade de São Paulo. E-mail: rodrigofelixcruz@ig.com.br